quarta-feira, 22 de setembro de 2010

PLATÃO, PLATÃO


Ela sempre chegava para interromper minhas leituras, querendo saber com quem eu estava saindo.
                               – Com ninguém, respondia com amargura e desdém.
                               – Também, dava de ombros, só vive lendo essas velharias, puxava o livro das minhas mãos, lia um trecho em voz alta e dizia: bosta, virava a página e novamente, bosta.
                               Aquilo me irritava ao extremo e eu só me controlava por sua causa, por saber que o nosso ponto de convergência é a leitura, mais especificamente, o discurso de Aristófanes, e nada que ela falasse poderia me afetar tanto quanto sentir a sua falta. Eu detestava esse comportamento dela, mas precisava da sua presença, porque através dos seus olhos e sexo, eu via o mundo e seus prazeres. Mas ela se foi, você também, e hoje eu vivo cada momento esperando sua volta, apesar de saber que os flashes de luzes multicoloridas, acordando-me a cada instante, são suficientes para reavivar sua lembrança e garantir minhas certezas. São momentos mágicos, esses, com a duração de um pensamento, que me devolvem a espera da vida.
                               A certeza que me cerca nesses momentos é chave de toda minha existência e eu não sei. Talvez nunca o saiba. Apenas lembro os primeiros instantes loucos com você e aquela falta de certeza dentro da minha alma. ‘Quero conversar sobre isso sim, não adianta fazer essa cara’.
                               Eu lhe beijei a boca pela primeira vez, por impulso, e gostei. Seu corpo roçando o meu, você sussurrando no meu ouvido ‘Platão, Platão’. Eu não entendia nada. Hoje, durante as luzes, começo a juntar os pedaços daquele verão enlouquecido, no qual você fervia em meus braços, gemia o nome do filósofo, para depois cair em desmaio de gozo. Sei lá o que pensei daquilo tudo, apenas achei engraçado no momento, depois diluí tudo num esquecimento torpe, típico daqueles dias quentes e sudorosos – e o espelho, na sala, suava.
                               Lembro-me com clareza da falta de certeza rondando você, como uma segunda aura. Meu Deus! aquilo me incomodava mais que sua ausência. Mas ia com você, buscando certas verdades escondidas e lhe dando coragem, ‘lembra?’. Eu era a sua indubitável certeza, pelo menos era o que você dizia: ‘você é minha única e última esperança’, eu ria e acreditava.
                               E os dias corriam quentes dentro e fora de mim, até que veio aquela chuva torrencial, você me pediu algum dinheiro para comprar cigarros, pegou o guardachuva, saiu e não voltou. Três dias depois, ouvi naquela AM louquíssima, na voz de algum locutor rouco e escandaloso:
                               – Corpo encontrado todo mutilado, no manguezal da praia – disse o rouco escandaloso. – A identificação só foi possível por meio dos documentos encontrados ao lado do corpo, tamanha era a mutilação.
                               Segundo o escandaloso, o corpo havia sofrido necrofilia.
                               Naquele dia eu morri. Apesar de suas ausências constantes, você sempre voltava. A partir daquele dia, nunca mais. Eu morri. Morri porque você não existia mais, porque estava lhe amando e sabia ser impossível o amar, porque as coisas não cabiam. Eu me desesperava: chorei e não fui trabalhar, emagreci. Procurei saber e entender tudo, mas não consegui atinar em nada. Entrei em depressão. Tomei tranqüilizante. Fumei maconha. Bebi tudo que pudesse me anestesiar. Chorei, chorei, chorei em cântaros. Nada conseguia aplacar meu desespero. Pensei em suicídio, cheguei a tentar, não tive coragem de cometê-lo.
                               Peguei licença médica e fui me esconder de mim numa clínica de repouso. Tempos depois, estava de volta à realidade, pois tinha de recomeçar a viver. Decidi, desde então, não me apaixonar por mais ninguém.
                               Foi ela que começou a perceber tudo, a me revelar, olhando no espelho, despertando você dos mortos. Era um domingo chuvoso e eu lia avidamente o mito do andrógeno de Aristófanes. ‘Platão, Platão’. Ela sempre me criticou por gostar tanto de velharia e, naquele domingo, procurou na estante de livros na sala da frente algum livro interessante, encontrando um que lhe atraiu bastante. Era um livro sobre psicologia, um tratado a respeito das disfunções de personalidade, causadas pela solidão e falta de atividade sexual. O livro estava todo marcado e dentro dele encontravam-se algumas cartas que você me escrevera. Ela começou a lê-las, sendo que, a medida que passava de uma para outra, sua fisionomia irradiava estupefação, logo transformada numa sonora gargalhada.
                               – Que coisa ridícula, disse. Você precisa se tratar.
                               Passou a ler as cartas em voz alta, zombando, enfatizando algumas passagens que achava mais ridículas, gesticulava.
                               Então, você apareceu. Acho que saiu do espelho, não sei. Aproximou-se dela, que não lhe notou a presença, tão concentrada estava em me ridicularizar, segurou-a pelo pescoço vigorosamente, não houve reação, em poucos minutos ela estava estendida no tapete.
                               Olhamo-nos, num misto de saudade e terror, eu na sala, você no espelho e nos beijamos demoradamente. Eu lhe mordi o pescoço, você me mordeu a orelha. Eu sussurrei ‘Platão, Platão’ e me entreguei de novo. Agora entendia e ria. Nua, estendida no tapete, ela parecia nos observar – não sei por que, mas participava do nosso gozo. Não importa, eu estava amando você novamente e, desta vez, não deixaria você comprar cigarros.

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