sexta-feira, 24 de setembro de 2010

CÁ DENTRO CHOVE



                               A chuva cai num inverno triste, onde janelas e portas fechadas anunciam a solidão do mundo, regada a gotículas gélidas que, num aglomerado, desabam sobre as ruas de granito. E não adianta chorar nem beber. O jeito é suportar o inferno desse vazio, ouvir música, ler ou simplesmente dormir, esquecer que existe vida (ou procurá-la nas paragens diáfanas dos sonhos).
                               Que horas são? Pergunto para a chuva, olho para o espelho. Nove horas da manhã, talvez. Parece que o sol quer vencer a chuva.
Porque as nuvens são tão negras sinto falta de luz e detenho a respiração por não agüentar mais me privar de ar (        ) inspirar expirar instantes de vida dentro fora vida morte vida morte expirar fico sem vida volto a inspirar e lembro que pode ser o último sopro quando sai (... entrego meu espírito em tuas mãos) preciso respirar o ciclo em movimentos mecânicos como num coito sem tesão (        ) vida chora geme (      ) o mundo chove e lá se vão as horas os dias como páginas viradas e viradas e viradas de um livro infinito que narra infinitas vidas. Não sei...
                               Tenho que ir trabalhar. Acho que não. Deixarei aquelas bestas autômatos executando seus movimentos programados por um tubarão qualquer, que depois as devorará. E eu não chorarei uma gota de chuva por elas. Seus corações programados não merecem minha mais sublime linfa.
                               Tomo banho, tomo café, acendo um cigarro, o espelho me olha: o que vê não sou eu, é um autômato que chove, rejeitado pelos tubarões, e que tenta se devorar. O espelho escurece, troveja e eu não me vejo mais: o espelho também me rejeita.
                               Não consigo ir. Ressurge a idéia sublime do sono, com suas paragens diáfanas. Não preciso ficar. Melhor dormir e dormir e dormir. E sonhar e sonhar e sonhar.
                               Mas são nove horas da manhã e chove. Chove lá fora. Chove cá dentro. O sol se retira para se esconder atrás de uma nuvem negra. Eu me comunico com as gotículas dessa nuvem, imploro que deixem o sol passar. Preciso de luz. No entanto, vejo a noite chegar. Necessito do sol.
                               Por que tenho necessidade de sol se a noite já chegou, se por trás dessas nuvens gris, existem estrelas que esperam por mim, só por mim, e me farão luz, para eu não precisar de sol?
                               Ainda vejo o quarto, os corredores, o choro, o riso. Meus livros e discos esperam ser tocados pela delicadeza ardida da luz, mas é a noite que os envolve e sela sua mensagem mágica. Já não chovo, choro, e o espelho me aceita de volta: não sou eu.
                               A noite torna-se intensa, envolve tudo, não só os livros e os discos, tudo que possa falar, pensar, imprimir sensações, vencendo-os, subjugando-os, mas não vence o espelho: ele possui um sol em si.
                        Eu me apago, escureço, ficam só o espelho e a chuva desse inverno triste e as nuvens negras que escondem o sol. A noite impera negra como o sono sem sonhos. Eu durmo, não sonho.
                               Escovo os dentes, pego a pasta a tiracolo, verifico se tem dinheiro na carteira, coloco um chiclete sem açúcar na boca e sigo para ser devorado pelos tubarões que me rejeitam.
                               Abro a porta. Nove e cinco. O dia ensolarado ofusca minha visão. Faz sol. Ponho os óculos escuros, fecho a porta e vou.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

UMA TELA


                        Era sempre assim quando João a encontrava e naquele dia não podia ser diferente.
                        As cores do dia já morriam bem longe no mundo. Um horizonte de fogo dominava tudo, numa explosão de vermelho intenso. Um espetáculo de pura paixão, muito, muito longe. Cá, as cores se apaziguavam em tons de cinza e luto, com as luzes da cidade tentando vencer o negror que começava a se apoderar das coisas.
                        João começou pintando tons suaves, pastéis, quase mornos, mas com uma profundidade de paixão. Usava as mãos, os dedos mais precisamente. Comprimia-os com cuidado para não machucá-la. Ela apenas o observava,  imóvel, esperando as cores que a tornariam viva e mágica. Tudo tinha uma pulsação dionisíaca: aquelas cores, aqueles dedos. Ela passiva suspirava de prazer.
                        Os movimentos dele começaram a ficar mais poderosos. Todo o corpo se concentrava em imprimir cor. O vermelho intenso começou a surgir em pinceladas que pareciam penetrá-la. Ela gemeu. Ele respirou fundo e gemeu também. Ela se esgueirava tentando fugir das investidas intrépidas de João, mas ele a dominava e subjugou-a totalmente.
                        Houve um momento de calma total, breve. João apenas sentia as cores. Olhos fechados, era todo tato. Ela pulsava, era toda cor. Já sentia delineando-se a explosão que viria. João imprimiu ritmo nas pinceladas usando também os dedos. Provocou-se uma confusão nas cores, as respirações se confundiram. Só havia cores intensas. Ela gemeu alto e se entregou finalmente. Ele rosnou feito bicho. Ela cravou-lhe as unhas nas costas. Ele lhe mordia toda. Ela desfaleceu em gozo, ele explodiu de prazer e tudo se fez cor para os dois. Cores intensas que foram, em dégradé, perdendo a intensidade, até tornarem-se calmas como a noite que tudo domina. As respirações apaziguaram-se. Fez-se silêncio e a calmaria da satisfação tomou conta de tudo.
                        Houve silêncio, um mudo silêncio de lago, um silêncio de tudo. E em um canto do quarto, a tela, em branco, esperava quieta sua vez de ser possuída.

MÚLTIPLA


Circula por mim uma criatura adorável:
às vezes imploro sua atenção e ela não me dá
não entende o chamado o achado que eu tenho em mãos.

Ela é múltipla dois pontos
Helga dos Santos,
Jullia Bitencurt,
Beta Má.

Muito má.

Muito água
porque consegue carregar meus medos em sua imensa sensação de consciência.

É linda.
É bela.
E permite que aqueles desqualificados pela vida transitem entre seus modos e medos.

Prometeu que eu seria desacorrentado através da música eletrônica
e até hoje o meu fígado continua sendo consumido pela porcaria acústica que ronda as ondas.

Tenho em mim que preciso dormir muito para poder entendê-la.

Acordar não adianta,
ela está além de qualquer estado de consciência,
ela está além de qualquer sensação de consciência.

Hei de fazer yoga com Helga
e se não der
continuarei fazendo palavras
numa tentativa espúria de dizê-la.

PLATÃO, PLATÃO


Ela sempre chegava para interromper minhas leituras, querendo saber com quem eu estava saindo.
                               – Com ninguém, respondia com amargura e desdém.
                               – Também, dava de ombros, só vive lendo essas velharias, puxava o livro das minhas mãos, lia um trecho em voz alta e dizia: bosta, virava a página e novamente, bosta.
                               Aquilo me irritava ao extremo e eu só me controlava por sua causa, por saber que o nosso ponto de convergência é a leitura, mais especificamente, o discurso de Aristófanes, e nada que ela falasse poderia me afetar tanto quanto sentir a sua falta. Eu detestava esse comportamento dela, mas precisava da sua presença, porque através dos seus olhos e sexo, eu via o mundo e seus prazeres. Mas ela se foi, você também, e hoje eu vivo cada momento esperando sua volta, apesar de saber que os flashes de luzes multicoloridas, acordando-me a cada instante, são suficientes para reavivar sua lembrança e garantir minhas certezas. São momentos mágicos, esses, com a duração de um pensamento, que me devolvem a espera da vida.
                               A certeza que me cerca nesses momentos é chave de toda minha existência e eu não sei. Talvez nunca o saiba. Apenas lembro os primeiros instantes loucos com você e aquela falta de certeza dentro da minha alma. ‘Quero conversar sobre isso sim, não adianta fazer essa cara’.
                               Eu lhe beijei a boca pela primeira vez, por impulso, e gostei. Seu corpo roçando o meu, você sussurrando no meu ouvido ‘Platão, Platão’. Eu não entendia nada. Hoje, durante as luzes, começo a juntar os pedaços daquele verão enlouquecido, no qual você fervia em meus braços, gemia o nome do filósofo, para depois cair em desmaio de gozo. Sei lá o que pensei daquilo tudo, apenas achei engraçado no momento, depois diluí tudo num esquecimento torpe, típico daqueles dias quentes e sudorosos – e o espelho, na sala, suava.
                               Lembro-me com clareza da falta de certeza rondando você, como uma segunda aura. Meu Deus! aquilo me incomodava mais que sua ausência. Mas ia com você, buscando certas verdades escondidas e lhe dando coragem, ‘lembra?’. Eu era a sua indubitável certeza, pelo menos era o que você dizia: ‘você é minha única e última esperança’, eu ria e acreditava.
                               E os dias corriam quentes dentro e fora de mim, até que veio aquela chuva torrencial, você me pediu algum dinheiro para comprar cigarros, pegou o guardachuva, saiu e não voltou. Três dias depois, ouvi naquela AM louquíssima, na voz de algum locutor rouco e escandaloso:
                               – Corpo encontrado todo mutilado, no manguezal da praia – disse o rouco escandaloso. – A identificação só foi possível por meio dos documentos encontrados ao lado do corpo, tamanha era a mutilação.
                               Segundo o escandaloso, o corpo havia sofrido necrofilia.
                               Naquele dia eu morri. Apesar de suas ausências constantes, você sempre voltava. A partir daquele dia, nunca mais. Eu morri. Morri porque você não existia mais, porque estava lhe amando e sabia ser impossível o amar, porque as coisas não cabiam. Eu me desesperava: chorei e não fui trabalhar, emagreci. Procurei saber e entender tudo, mas não consegui atinar em nada. Entrei em depressão. Tomei tranqüilizante. Fumei maconha. Bebi tudo que pudesse me anestesiar. Chorei, chorei, chorei em cântaros. Nada conseguia aplacar meu desespero. Pensei em suicídio, cheguei a tentar, não tive coragem de cometê-lo.
                               Peguei licença médica e fui me esconder de mim numa clínica de repouso. Tempos depois, estava de volta à realidade, pois tinha de recomeçar a viver. Decidi, desde então, não me apaixonar por mais ninguém.
                               Foi ela que começou a perceber tudo, a me revelar, olhando no espelho, despertando você dos mortos. Era um domingo chuvoso e eu lia avidamente o mito do andrógeno de Aristófanes. ‘Platão, Platão’. Ela sempre me criticou por gostar tanto de velharia e, naquele domingo, procurou na estante de livros na sala da frente algum livro interessante, encontrando um que lhe atraiu bastante. Era um livro sobre psicologia, um tratado a respeito das disfunções de personalidade, causadas pela solidão e falta de atividade sexual. O livro estava todo marcado e dentro dele encontravam-se algumas cartas que você me escrevera. Ela começou a lê-las, sendo que, a medida que passava de uma para outra, sua fisionomia irradiava estupefação, logo transformada numa sonora gargalhada.
                               – Que coisa ridícula, disse. Você precisa se tratar.
                               Passou a ler as cartas em voz alta, zombando, enfatizando algumas passagens que achava mais ridículas, gesticulava.
                               Então, você apareceu. Acho que saiu do espelho, não sei. Aproximou-se dela, que não lhe notou a presença, tão concentrada estava em me ridicularizar, segurou-a pelo pescoço vigorosamente, não houve reação, em poucos minutos ela estava estendida no tapete.
                               Olhamo-nos, num misto de saudade e terror, eu na sala, você no espelho e nos beijamos demoradamente. Eu lhe mordi o pescoço, você me mordeu a orelha. Eu sussurrei ‘Platão, Platão’ e me entreguei de novo. Agora entendia e ria. Nua, estendida no tapete, ela parecia nos observar – não sei por que, mas participava do nosso gozo. Não importa, eu estava amando você novamente e, desta vez, não deixaria você comprar cigarros.